Papo sobre o óbvio
Uma coisa que faço com frequência é
descobrir o óbvio. Isto é, óbvio para os outros,
porque, de repente, percebo ali algo inexplicável e
fascinante. Difícil é expressá-lo.
Um troço que me deixa surpreso é descobrir
que uma menininha, de uns poucos anos, fala. Você
pode retrucar - e daí? Gato mia antes de apreender a
andar. É verdade, mas miar é uma coisa e falar é
outra. Não me diga que o nosso falar equivale ao
miado do gato, pois esse é um argumento que não
aceito, uma que falar, diferente de miar, implica
raciocinar, e foi isso que subitam ente me
surpreendeu: a menina fala, pensa...
Vou ver se me explico. Aquela menininha,
que agora fala e sabe o que quer, faz pouco tempo era
um bebezinho que só esperneava, bracejava e
grunhia. E foi assim que, inesperadamente, me
perguntei: mas de onde vem isso? Sim, porque
macaco é inteligente, mas não dispõe de uma
linguagem logicamente construída, com sujeito,
verbo, objeto...
É certo que não foi aquela menina que
inventou essa linguagem, mas a verdade é que,
tivesse ela nascido no Japão ou na Austrália, em
Angola ou no Chile, falaria do mesmo modo -noutra
língua, claro -, usaria uma linguagem que implica
raciocinar, julgar, opinar, negar, afirmar, inventar.
Não sei se estou me fazendo entender, mas o
certo é que me deixo ficar fascinado e perplexo por
esse fato, ou seja, que diferente de todos os outros
animais, eu e você somos capazes de construir um
mundo de idéias, valores e opiniões. E mais: somos
capazes de elaborar conceitos que buscam dar
sentido à existência.
Está claro agora? Talvez sim e talvez não.
Adificuldade é que estou tentando explicar uma coisa
que nem eu mesmo entendo. O que acabo de dizer,
quanto à capacidade das pessoas é certo e é sabido.
E óbvio mesmo, o que não corresponde ao que me
parece maravilhoso, que percebi quando ouvi a
menina falar: nasceu com ela a capacidade de
pensar?
A gente diz que ensinamos as crianças a
falar. Sim, mas elas só aprendem porque são animais
falantes. Duvido que alguém ensine um gato a falar.
Conheci uma família que tinha um filho caçula, que já
com dois anos não falava. Por mais que a mãe
insistisse e o fizesse repetir “minha mãe gosta do
Zezinho”. Ele ouvia, sorria e não falava nada. A mãe
começou a se desesperar, temendo que o filho fosse
mudo. E não é que, certo dia, ele disparou a falar?
Sabia o nome de tudo, construía as frases
perfeitamente, deixando a família inteira boquiaberta.
É que, na verdade, a criança aprende a
língua do país em que ela nasceu. Mas o falar
mesmo, que implica ser capaz de formular
pensamentos e comunicar-se com os outros, isso
nasce com a pessoa, é uma qualidade específica do
bicho humano. Pensando melhor, digo que é mais
que isso: a criança fala porque pensa e, por pensar,
constrói uma compreensão da vida e do mundo. Isso
já está latente nas primeiras palavras que a criança
balbucia.
Claro, dirá você, isso é o óbvio - e é, mas é
nele que reside a nossa espantosa capacidade de
inventar a vida, de inventar o mundo, já nas paredes
das cavernas, quando desenharam-se as primeiras
imagens do bisão.
Mas o que me espanta não é exatamente
isso e, sim, de onde vem isso, essa capacidade que já
está latente no recém-nascido (ou no embrião?), que
ainda nem mesmo enxerga. Entendo que alguns
acham que foi Deus que nos criou assim e, portanto,
não há por que se espantar. Mas há quem, ainda
assim, se espante.
Já me vi espantado até mesmo com as
aranhas, conforme já falei aqui nesta coluna. Como
explicar que ela produza uma teia que é transparente
para que sua possível presa - uma mosca, que seja -
não a veja; e que essa teia seja pegajosa para impedir
que o inseto que cair ali consiga se safar? Tudo como
tem que ser. E ela, a aranha, depois de estender a teia
como uma armadilha num ponto estratégico da
parede, coloca-se no centro dela e ali fica, dias e dias,
semanas, meses, esperando que a presa caia na
armadilha e ela possa comê-la.
E quem contou à aranha que ali há moscas,
que as moscas voam e que cedo ou tarde cairão na
teia? A verdade é que com uma invejável capacidade
artesanal e plena consciência do que faz, está ela ali,
confiando no acaso que, para alguns, é Deus.
GULLAR. Ferreira. Papo sobre o óbvio. Folha de S.Paulo, 18 maio 2014. Extraído do site:<www1folha.uol.com.br/colunas/ferreiragullar/2Q14/G5/1455377- papo-sobre-o-obvio.shtml>.
Em “Sim, porque macaco é inteligente, mas não
dispõe de uma linguagem logicamente construída,
com sujeito, verbo, objeto...” as reticências foram
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