A CHAVE
Ela abre mais do que uma porta, inaugura um novo
tempo
IVAN MARTINS
Certos objetos dão a exata medida de um
relacionamento. A chave, por exemplo. Embora
caiba no bolso, ela tem importância gigantesca na
vida dos casais. O momento em que você oferece a
chave da sua casa é aquele em que você renuncia à
sua privacidade, por amor. Quando pede a chave de
volta - ou troca a fechadura da porta - está retomando
aquilo que havia oferecido, por que o amor acabou.
O primeiro momento é de exaltação e esperança. O
segundo é sombrio.
Quem já passou pela experiência sabe como
é gostoso carregar no bolso - ou na bolsa - aquela
cópia de cinco reais que vai dar início à nova vida.
Carregada de expectativas e temores, a chave será
entregue de forma tímida e casual, como se não fosse
importante, ou pode vir embalada em vinho e flores,
pondo violinos na ocasião. Qualquer que seja a cena,
não cabe engano: foi dado um passo gigantesco.
Alguém pôs na mão de outro alguém um totem de
confiança.
Não interessa se você dá ou ganha a chave, a
sensação é a mesma. Ou quase.
Quem a recebe se enche de orgulho. No auge
da paixão, e a pessoa que provoca seus melhores
sentimentos (a pessoa mais legal do mundo,
evidentemente) põe no seu chaveiro a cópia discreta
que abre a casa dela. Você só nota mais tarde,
quando chega à sua própria casa e vai abrir a porta.
Primeiro, estranha a cor e o formato da chave nova,
mas logo entende a delicadeza da situação. Percebe,
com um sorriso nos lábios, que suas emoções
são compartilhadas. Compreende que está sendo
convidado a participar de outra vida. Sente, com
enorme alívio, que foi aceito, e que uma nova etapa
tem início, mais intensa e mais profunda que anterior.
Aquela chave abre mais do que uma porta. Abre um
novo tempo.
O momento de entregar a chave sempre foi para
mim o momento de máximo otimismo.
[...]
Você tem certeza de que a outra pessoa ficará
feliz e comovida, mas ao mesmo tempo teme, secretamente, ser recusado. Então vê nos olhos dela
a alegria que havia antecipado e desejado. O rosto
querido se abre num sorriso sem reservas, que você
não ganharia se tivesse lhe dado uma joia ou uma
aliança. (Uma não vale nada; para a outra ela não
está pronta). Por isto ela esperava, e retribui com um
olhar cheio de amor. Esse é um instante que viverá
na sua alma para sempre. Nele, tudo parece perfeito.
É como estar no início de um sonho em que nada
pode dar errado. A gente se sente adulto e moderno,
herdeiro dos melhores sonhos da adolescência, parte
da espécie feliz dos adultos livres que são amados e
correspondidos - os que acharam uma alma gêmea,
aqueles que jamais estarão sozinhos.
Se as chaves de despedida parecem a pior coisa
do mundo, não são.
[...]
A gente sabe que essas coisas, às vezes, são
efêmeras, mas é tão bonito.
Pode ser que dentro de três meses ou três anos a
chave inútil e esquecida seja encontrada no bolso de
uma calça ou no fundo de uma bolsa. Ela já não abrirá
porta alguma exceto a da memória, que poderá ser
boa ou ruim. O mais provável é que o tato e a visão
daquela ferramenta sem propósito provoquem um
sorriso agridoce, grisalho de nostalgia. Essa chave
do adeus não dói, ela constata e encerra.
Nestes tempos de arrogante independência, em
que a solidão virou estandarte exibido como prova
de força, a doação de chaves ganhou uma solenidade
inesperada. Com ela, homens e mulheres sinalizam a
disposição de renunciar a um pedaço da sua sagrada
liberdade pessoal. Sugerem ao outro que precisam
dele e o desejam próximo. Cedem o seu terreno,
correm o risco. É uma forma moderna e eloquente de
dizer “eu te amo”. E, assim como a outra, dispensa
“eu também”. Oferece a chave quem está pronto,
aceita a chave quem a deseja, reciproca, oferecendo a
sua, quem sente que é o caso, verdadeiramente. Nada
mais triste que uma chave falsa. Ela parece abrir uma
esperança, mas abre somente uma ilusão.
Adaptado de http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/ivan-martins/noticia/2015/04/chave.html
Em relação ao excerto: “Oferece a chave quem
está pronto, aceita a chave quem a deseja,
reciproca, oferecendo a sua, quem sente que
é o caso, verdadeiramente.”, é correto afirmar
que