O valor da fofoca
Walcyr Carrasco
Dos aspectos negativos da fofoca, todos sabemos. Em Os miseráveis, Victor
Hugo conta a história de Fantine, que se torna prostituta. Quem só viu o filme
ou só assistiu ao musical não sabe muito bem como ela vai para as ruas. O livro
conta: fofoca! Fantine é operária. Mas tem uma filha, sendo solteira, em época de
moral rígida. Paga uma família para cuidar da menina, Cosette. Mas não sabe ler.
Para enviar os pagamentos e pedir notícias, usa os trabalhos de um homem, que
escreve e envia o dinheiro. As amigas desconfiam. Especulam. O homem não
conta, mas uma consegue ver o endereço numa carta. E se dá ao trabalho de ir
até o local onde vive Cosette. Volta com a história completa e conta às amigas. A
história chega à direção da fábrica e Fantine é demitida por ser mãe solteira. Vende
os dentes, os cabelos, torna-se prostituta, morre no hospital. Jean Valjean, que se
esconde da polícia, era o dono da fábrica. Culpa-se pela insensibilidade, busca
Cosette e a cria. Mas a questão é que a pobre Fantine teve de vender os dentes e
se prostituir devido à avidez da fofoca. Hoje, em tempos menos rígidos, a intimidade de uma pessoa, confidenciada entre lágrimas, pode virar piada no próximo jantar de amigos. Ou seja: longe de mim defender a fofoca em si. Mas ela
tem seu valor, psicológico e criativo.
Simples. A fofoca é uma forma de criar.
Sempre digo que as pessoas têm tanta necessidade de ficção na vida
como do ar que respiram. Por isso precisam ler romances, assistir a filmes, novelas.
Até mesmo conferir revistas sobre celebridades, uma forma de exercitar a imaginação,
já que a vida real é muito mais árdua do que aparece nas reportagens.
Criar também faz parte da natureza humana. Alguns se contentam botando posts
no Instagram, inventando uma vida que não têm, com a taça de vinho emprestada
de alguém, num hotel onde não se hospedaram. Outras preferem criar sobre a vida
alheia. Aquela mulher que conta à outra sobre uma terceira, colega de escritório.
– Sabe que ela está saindo com um rapaz 20 anos mais jovem? E sustenta!
Pode ser verdade. Ou ela apenas viu a moça com o sobrinho, saindo do
trabalho. O resto, inventou. Nem todo mundo é escritor, mas todo mundo pode
criar ficção. Eu mesmo aprendi muito com a fofoca. Morava em um prédio onde
vivia uma mulher já madura. De dia, recebia um, que a sustentava, dava carro,
conforto material. De noite, recebia outro, que amava. Era a fofoca do prédio.
Acontece que era feia. Garanto, feia de verdade. Os dois senhores, pavorosos.
Aliás, o que ela amava, um velho bem mais feio que o outro, o rico. Eu, que
tinha certo preconceito estético, aprendi que beleza não é o mais importante. Havia
amor, dinheiro e paixão naquela história de pessoas maduras. A fofoca me fez
entender mais da vida. Em outra época, soube que o filho da vizinha não era filho,
mas neto. Filho da moça que considerava irmã, mãe solteira. Toda a vila onde
morava sabia, menos o menino. Isso me fez entender mais sobre os pais, que são
capazes de acolher, dar solidariedade num momento difícil. Suponho que o garoto
deve ter levado um susto quando soube. Mas é outra história.
Minha mãe, quando eu era criança, tinha um bazar. Pequeno, típico de
interior, em Marília. Era o centro de informações sobre a vida alheia do bairro.
Todas as mulheres passavam, comentavam. Eu tentava ouvir. Mamãe me punha
para fora quando a história era mais pesada. Isso me ajudou a desenvolver um
certo talento. Quando fiz faculdade de jornalismo, e mais tarde trabalhei no ramo,
era ótimo com as perguntas ao entrevistar. Destemido. Fiz sucesso com colunas,
jornalismo comportamental. Isso me ajuda até hoje. Quando vou construir uma história, falo com pessoas, converso. Extraio segredos. Conto por meio dos personagens.
Vejam que ligação bonita saber da vida alheia tem com o ato de criar.
O que é uma grande biografia, a não ser a vida de alguém? Uma fofoca
autenticada, impressa e aplaudida pela crítica?
Há um porém: a fofoca, mesmo real, passa pelo crivo de quem conta. Pelo
meu, pelo seu, pelo nosso olhar. É a velha história – alguém me oferece meio copo
de suco de laranja e posso dizer.
– Adorei, ganhei meio copo de suco refrescante.
– Odiei, imagine, me dar só meio copo? Era resto!
Quando ouvir uma fofoca, abra as orelhas. O que alguém diz sobre o outro
revela mais sobre quem fala do que sobre o alvo em questão. Uma fofoca, como
todo ato de criação, tira a máscara do criador.
Disponível em: https://epoca.globo.com/sociedade/walcyr-carrasco/noticia/2017/10/o-valor-da-fofoca.html.
Acesso em: 08 maio 2018.
A divisão silábica está correta, EXCETO em: